Revista Nós Contemporâneos VAZÃO n°71 BarrusMÀIMPRESSÃOeditora, Recife, Junho 2012
Há alguns anos Thelmo Cristovam cria paisagens sonoras designadas com o nome genérico de Fonografia.
Thelmo Cristovam é, antes de tudo, um artista sonoro, que toca diferentes instrumentos de sopro privilegiando a improvisação, interessando-se, ao mesmo tempo, pela gravação sonora em um espaço urbano ou na natureza. Em todos os casos, ele privilegia o som, seja ele gravado ou tocado. O som é o objeto de seu trabalho. As fontes sonoras são múltiplas ; assim, a paleta de trabalho do artista é extensa e ao lado de sons “naturais” encontramos também tanto ruídos digitais quanto sons de instrumentos de música.
A ideia de trabalhar a paisagem sonora remete ao visual e às suas modalidades de construir a paisagem, porém, diferentemente do que acontece na visão, só podemos nos abstrair do ambiente sonoro parcialmente. Não podemos fechar os ouvidos, como fechamos os olhos. Somos seres de sons, quer se trate de sons corporais ou dos que nos rodeiam, nos isolam, ou submergem…
Em suma, não se escapa do som. A ideia de produzir paisagens sonoras levará em conta essas camadas e estratos sonoros que nos atravessam, seja isolando-os a fim de nos fazer descobrir aspectos até então imperceptíveis, seja acrescentando-os àqueles de nosso cotidiano, ou ainda (re) criando experiências sonoras singulares.
Se a ideia do soundscape é a versão áudio do landscape, ainda assim essa noção está ligada à sua definição criada por Raymond Murray Schafer nos anos 70 : é « o ambiente sonoro. Tecnicamente, [o soundscape] é toda porção do ambiente sonoro vista como um campo de estudo.[1] » (Schafer, 1997, p. 366)). Portanto, para quem a concebe, a paisagem sonora é um ambiente que se estuda. É, pois, um campo delimitado, pode se referir a ambientes que já existem ou a construções. Admite-se, portanto, a priori, que uma paisagem sonora possa ser construída e não apenas extraída, à maneira de uma simples gravação.
Com frequência, quando se fala de paisagem sonora, não se pode deixar de lado as relações complexas entre a paisagem e o conceito de natureza. Nesse caso, opõe-se aos sons ditos naturais – o som dos elementos, dos animais, de paisagens naturais – os sons urbanos.
É preciso, de saída, distinguir a percepção desses sons : a escuta direta de um ambiente sonoro no qual estamos imersos, daquela que foi gravada e que manifesta a distância patente entre a fonte (a emissão) e sua restituição, reprodução (difusão). Com efeito, esses dois mundos sofrem quase de uma incompatibilidade de fato. Quando estamos num ambiente sonoro qualquer, a experiência que fazemos do espaço sonoro é tributária de nossa posição no espaço, nossos movimentos modificam a percepção e qualificam a profundidade, a opacidade do próprio espaço sonoro. Quando escutamos com fones de ouvido uma paisagem sonora, estamos quase diante de uma tela, os deslocamentos sonoros são recebidos e não gerados por nós. Somos separados das fontes e nos tornamos espectadores indiretos : assistimos ao espetáculo da natureza gravada ! É nesse ponto preciso da captação, da seleção, da montagem que se efetua, entre outros, o gesto do músico. Para Thelmo Cristovam, não se trata de fazer um documentário. Para além da especificidade de lugares, de tempos e de duração da gravação, a obra se funda na exploração das possibilidades oferecidas pelo material. É a qualidade do material, definido tanto pelas escolhas dos instrumentos a partir dos quais ela foi realizada, quanto pela natureza do espaço investido, que engendra a seleção, a transformação parcial ou radical do documento de origem. O que está em jogo aqui não é tanto a reprodução, e sim a produção de uma paisagem sonora. Assim, quando Thelmo vai para o sertão, ou para a floresta para fazer suas gravações, o que o motiva é a riqueza dos elementos sonoros, a densidade das camadas de sons, suas texturas… na qual nem sempre prestamos atenção, mas que uma escuta atenta poderá salientar ou nos fazer descobrir ; é nesse sentido que se falará de uma escuta dirigida pelo captador de som, mas também por aquele que trabalha, isola no material linhas de sons que seguem em direções distintas. Como o músico reconhece : « Estou me dedicando a mapear os sons naturais do estado de Pernambuco porque eles são singulares. » A localização, a hora da captação são essenciais, pois prefiguram e modelam a peça sonora que será criada. A decisão relativa à captação gera a montagem que, às vezes, consiste em um simples corte seco. « Algumas vezes a gravação se aproxima tanto do que eu queria que basta uma escolha do trecho da publicação pra publicar, um corte seco no começo e outro no final[2]. » O músico compartilha a atitude dos cineastas experimentais e documentaristas que, conscientes das qualidades intrínsecas do documento filmado, limitam-se a decidir selecionar um início e um fim de uma sequência filmada. O filme e a peça sonora não funcionam como um documentário através de um conjunto de validação quanto ao real, seu mimetismo, sua fidelidade…, o que está em jogo é a veracidade da peça, que se constitui como uma realidade separada da simples reprodução. É a distância entre o gravado e a reprodução que induz essa mudança de status dinamizado pela escuta. Assim, em certas fonografias, a montagem é intensa e, no entanto, não se deixa apreender no momento da escuta. A artificialidade da paisagem sonora não se revela na escuta, somente no momento de sua feitura, mas a paisagem, esta sim, se constitui no momento da escuta. Como Thelmo observa : « E tudo isto, após, caso seja necessário, muita edição, não deve ser notado, o resultado final deve ser indistinguível de um ambiente « natural », ou seja, eu tento recriar paisagens sonoras.[3] » A paisagem sonora criada vai responder a várias especificidades da escuta : um ambiente imersivo particular, ou seja, destacado de suas fontes. Estamos na (re) produção, ou, mais exatamente, no trabalho da representação aplicada ao som, e isso acarreta um grande número de questões relativas ao contexto no qual a e se dá, sua disposição no espaço…
Yann Beauvais
(Tradução : Eloisa Araújo Ribeiro)
[1] R. Murray Schafer : The Soundscape, our sonic environment and the turning of the world, 1977, Knopf, reed Destiny Books, 1994. SHAFER, R. Murray. A afinação do Mundo. São Paulo : Editora UNESP, 2001. (Tradução : nome do tradutor)
[2] E.mail de Thelmo Cristovam do dia 27 de maio de 2012.
[3] Idem.